'Tinder da reciclagem' conecta
autônomos que coletam resíduos a empresas e cidadãos que querem descartar
materiais.
Nos mais de 20 anos de
carreira como catadora de materiais reciclados, Rosineide Moreira Dias das
Neves, a dona Rosa, se habituou à penosa rotina de percorrer as ruas do Recife
na missão de filtrar o que é reciclável do que é lixo nas calçadas, tendo que enfrentar
preconceito pelo caminho.
"Tem muita gente que
discrimina o que a gente faz. Acha que a gente é catador de lixo. Não entende
que não é lixo, é reciclagem", diz a pernambucana de 55 anos. "A
gente está tentando limpar o ambiente, mas a sociedade não vê."
Veja vídeo da BBC
Os périplos incertos em busca
de papelão, garrafas PET, latinhas de alumínio e outros materiais estão dando
lugar a viagens mais garantidas, na medida em que aumentam os chamados de
endereços certos para coletar materiais recicláveis - em residências, escolas,
lojas ou edifícios.
Dona Rosa é uma entre 71
catadores e catadoras de Pernambuco cadastrados no Cataki, um aplicativo
lançado em julho do ano passado para conectar catadores independentes a
cidadãos ou empresas que queiram dispor materiais recicláveis corretamente - e
se descreve como um "Tinder da reciclagem", em referência ao
aplicativo de relacionamentos.
Desenvolvido pela ONG Pimp My
Carroça, do grafiteiro e ativista Mundano, de São Paulo, o Cataki ganhou, em
fevereiro, em Paris, o grande prêmio de inovação do Netexplo, observatório que
estuda o impacto social e econômico de tecnologias digitais e premia as
iniciativas consideradas mais inovadoras, em um fórum realizado em parceria com
a Unesco.
O aplicativo indica os catadores
de uma região em um mapa com ícones de carroças, o veículo com que a maioria
transporta os resíduos que coleta.
De acordo com a ONG, os
catadores são responsáveis pela coleta de 9 em cada 10 quilos de material
reciclado no país - mas não têm reconhecimento pelo papel que desempenham. O
Censo de 2010 identificou no Brasil, na época, cerca de 400 mil catadores de
materiais recicláveis.
O país gera mais de 200 mil
toneladas de lixo por dia, mas uma parcela pequena vai para reciclagem - cerca
de 13%, de acordo com o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea).
"Nosso foco é que os
catadores sejam reconhecidos como prestadores de um serviço público, e que o
aplicativo ajude a gerar mais renda para eles", diz Carol Pires,
coordenadora do Pimp My Carroça.
O aplicativo é uma plataforma
colaborativa sem fins lucrativos, e os valores para uma coleta ficam a cargo da
negociação entre as partes. Não há taxas para usar o app, mas a recomendação é
que o catador seja pago pelo serviço, diz Pires - de acordo com a quantidade de
material a ser coletado a distância a ser percorrida.
'Invisibilidade social'
No aplicativo, os ícones de
carroças levam a um curto porém simpático perfil apresentando cada catador, com
foto, apelido, telefone, as áreas onde atua, os tipos de resíduos que coleta e
uma breve história de vida.
O perfil de Dona Rosa traz sua
foto sorridente na Linha do Tiro, bairro onde mora no Recife, na zona norte da
capital pernambucana.
Inclui seu lema de vida -
"a reciclagem trouxe meu sustento" - e um resumo dos veículos dos
quais dispôs ao longo de 20 anos na coleta: "começou com triciclo,
carroça, cavalo e agora tem uma Kombi velha".
A Kombi foi comprada com o
dinheiro da rescisão recebida pelo marido há cerca de três anos, quando foi
demitido de uma empresa de reciclagem. No ano passado, o veículo passou por uma
"pimpada", recauchutagem que está na origem do trabalho do Pimp My
Carroça. Em tradução livre, o nome da ONG significa "turbine minha carroça"
e foi inspirado no programa americano de TV Pimp My Ride, que transformava
latas-velhas em carros turbinados.
O projeto foi iniciado por
Mundano em 2012, criando mutirões para grafitar carroças de catadores e
catadoras e fazer uma série de reparos nos veículos - para aumentar sua
visibilidade e autoestima.
Diante de públicos
internacionais no TED e na Unesco, o grafiteiro vem comparando esses
profissionais a super-heróis - que teriam o "poder" da invisibilidade
na sociedade, fazendo um trabalho essencial para o meio ambiente e para a
sustentabilidade das cidades, mas sem receber reconhecimento.
"No mundo todo, as
empresas estão gastando bilhões falando em sustentabilidade. Mas essas são as
pessoas que estão agindo na prática. Ao conectá-las, podemos aumentar sua renda
e ajudá-los em sua missão", afirmou Mundano ao apresentar o app no fórum
da Netexplo.
O Cataki estava entre as dez
inovações premiadas neste ano. Após a apresentação de cada uma, foi eleito pelo
público como o grande vencedor deste ano.
Kombi "Joinha"
No fim do ano passado, a Kombi
de dona Rosa foi pintada pelo grafiteiro pernambucano Johny Cavalcanti como
parte do Pimp My Carroça, com apoio da escola Saber Viver, do Recife. Ganhou
cores vibrantes e uma "cara" feminina, com cílios prolongados nos
faróis e um sorriso largo sobre o parachoque. Dona Rosa apelidou o veículo de
Joinha e diz que passou a ser reconhecida na rua, atraindo atenção por onde
passa.
"Ela me trouxe muita
alegria. Mas muita gente não sabe o que é arte, né? Tem gente que diz: 'Tira
esse circo daqui!' e eu: 'É circo, mas está me sustentando!' Ou então: 'Tira
essa palhaçada daqui!' e eu: 'Não é palhaçada não, bem, é meu ganha
pão!'", conta.
Ela enumera assim as
principais dificuldades na vida do catador: gente que joga vidro quebrado no
lixo sem separar, gente que joga cocô de cachorro no lixo sem separar, e o
preconceito.
Desde que se cadastrou na
Cataki, dona Rosa conta com novos clientes fixos, como uma filial um hospital,
alguns prédios no bairro de Casa Amarela e uma residência no Caxangá.
"O aplicativo é muito bom
porque está dando valor à gente. Está trazendo reconhecimento. Através dele, o
pessoal está notando que a gente existe."
Ela diz que "quem a vê
hoje assim", rodando pela cidade com uma Kombi tão bonita e levando
sustento para casa, não imagina o que ela já passou na vida.
Rosa nasceu em Aliança, cerca
de 100km a noroeste do Recife. Órfã de pai e mãe, aos 8 anos foi levada para a
capital para viver e trabalhar na casa de uma família. O casal faleceu poucos
meses depois. Ainda criança, Rosa seguiu morando com outros membros da família,
num "pinga-pinga" de casa em casa. "Teve tempo de eu dormir até
no chão em cima da minha roupa", lembra.
"Graças a Deus, encontrei
um meio para poder vencer na vida e nunca mexi no que é dos outros",
afirma.
Começou a trabalhar com
reciclagem com o marido, e hoje conta com a ajuda do filho, de 24 anos.
Engravidar não estava nos planos, mas virou uma bênção. "Ele foi um
projeto de Deus. Eu mesma não queria ter filho. Passei por muita dificuldade na
vida, não queria botar um filho no mundo para passar pelo que eu passei",
diz, com lágrimas nos olhos apesar de o sorriso continuar no rosto. "Eu
passei por muita coisa, minha filha."
'Cadastre um catador'
Segundo a coordenadora Carol
Pires, a ideia do Cataki surgiu a partir da visibilidade gerada pelas mais de
300 carroças que já foram turbinadas Brasil afora pelo Pimp My Carroça - e as
perguntas que se seguiram.
"A gente começou a
receber pedidos de pessoas próximas falando que tinham material em casa e
precisavam do contato de um catador", conta Pires. "Faltava uma
maneira de as pessoas encontrarem os catadores na região onde moram."
Hoje, o aplicativo tem mais de
500 catadores cadastrados em cerca de cem cidades no país.
Mas é em São Paulo e no Recife
que está mais consolidado. Isso porque ele depende de um trabalho gerencial e
social que vai muito além da interface tecnológica, e nas duas cidades há
representantes em contato permanente com os catadores.
Ellen Fernanda, coordenadora
no Recife, diz que a capital tem servido como uma espécie de cidade-modelo para
o aplicativo, buscando desenvolver ações para aprimorar seu funcionamento. Ela
tem feito encontros mensais com os cadastrados para orientá-los no uso do
aplicativo. São dicas básicas, para uma população em geral muito carente.
"Oriento eles sobre como
atender o telefone, combinar a coleta, que devem pedir para alguém anotar o
endereço se não souberem escrever... São muitas dificuldades", explica.
"Eu busco elevar a autoestima deles, falo sobre a importância de seu
trabalho", conta.
Ellen diz que a simples tarefa
de manter o cadastro atualizado envolve um trabalho braçal enorme, já que os
catadores muitas vezes perdem os celulares, mudam de chip e de número.
Conseguir a doação de aparelhos também tem sido parte do trabalho, e campanhas
nesse sentido também vêm sendo realizadas por voluntários do Cataki em outras
cidades.
Se inclusão digital está longe
de ser uma realidade para a maioria, a expectativa da ONG não é de que os
próprios catadores se cadastrem nem dependam de smartphone ou acesso a
internet. A ideia é incentivar que simpatizantes lhes apresentem o aplicativo e
façam o cadastro para eles. Aos catadores basta ter um número de telefone, que
será informado em seu perfil no aplicativo.
"A ideia é que as pessoas
se apropriem mesmo. Se baixam o aplicativo e não acharem catadores em sua
região, que ajudem a cadastrá-los quando os encontrarem na rua", explica
Carol Pires.
De Miguel Arraes a Eduardo
Campos
A BBC News Brasil acompanhou o
trabalho de coleta de Rosa numa manhã quente de sábado no Recife. Ela nos
recebeu com um suco refrescante de cajá, feito da fruta e não da polpa, em sua
casa, um apartamento pequeno no Conjunto Habitacional Eduardo Campos, batizado
em homenagem ao falecido ex-governador de Pernambuco.
Antes disso, a família viveu
durante 20 anos em uma favela que sempre alagava na época das chuvas. A
"invasão" era conhecida como Vila Miguel Arraes - o avô de Eduardo
Campos, que foi três vezes governador de Pernambuco.
Dona Rosa partiu na Kombi com
Renato, seu parceiro de trabalho, que dirigia o veículo e encostava sempre que
apareciam pilhas de caixas ou outros materiais recicláveis na calçada. Ela
saltava do carro, pegava o material correndo e jogava na caçamba, os carros
atrás buzinando em protesto.
A parada principal foi na
filial Cultura Inglesa do bairro Madalena, de onde a dupla saiu com sacolas e
mais sacolas de papel, plástico, PET e outros materiais, enchendo a Kombi. O
acordo é que Rosa e Renato recebem R$ 50 em cada coleta, de 15 em 15 dias. O
contato foi feito por Raquel Laureano, diretora-executiva do curso de inglês.
Ela conta que eles têm buscado envolver os alunos e seus pais, incentivando que
tragam materiais de casa, se não tiverem onde reciclar.
"Essa preocupação deveria
ser do poder público, mas é também dos indivíduos. Acho que essa consciência
está começando a aumentar com iniciativas como essas. Não adianta esperar o
poder público agir", considera.
Na primeira ida ao curso de
inglês, dona Rosa foi apresentada aos professores e alunos e teve um dia de
educadora: pediram-lhe que falasse sobre o que fazia e ensinasse a melhor forma
de separar os materiais para a coleta.
"Minha filha, cheguei a
ficar sem ter noção de como reagir. É uma coisa muito bonita, muito boa. Você
já passou por muita dificuldade na vida e de repente aparece uma coisa boa
assim", orgulha-se. "Estou feliz porque estão reconhecendo o nosso
trabalho."
Fonte: G1