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"País precisa de rumo para voltar a crescer", diz Fernando Henrique Cardoso


Da safra de ex-presidentes da República eleitos diretamente desde o processo de redemocratização do país, Fernando Henrique Cardoso é o único que tem o que comemorar neste 1º de julho. Há 25 anos, ele estava em agenda de campanha em Minas Gerais, três meses depois de deixar o Ministério da Fazenda, onde liderou o plano que resultou na mais longeva moeda brasileira e alavancou a sua candidatura ao Palácio do Planalto. Nesta entrevista exclusiva ao Correio, na sede de sua Fundação, ele recorda com carinho o apoio do presidente Itamar Franco à época e traça um paralelo entre aqueles primeiros passos do real e os dias atuais. Aproveita para fazer um alerta: “A população tem que perceber que esse governo vai nos levar para algum futuro. O presidente Itamar opinava muito no começo. A bolsa oscilava. Depois, perceberam que ele não usaria a vontade dele para atrapalhar um processo econômico. Aqui, não temos muita certeza ainda. A gente vê, de vez em quando, uns impulsos presidenciais que assustam. Dá a impressão de que o ministro da Economia (Paulo Guedes) não tem tanto poder quanto é necessário para levar adiante o país”, diz. FHC também faz um alerta sobre os riscos para a democracia e afirma que Bolsonaro precisa entender que o Congresso tem poder — e muito.

O plano Real completa 25 anos. Que avaliação o senhor faz desse período?
Primeiro, nós nunca imaginávamos, no começo, que seria possível estabilizar a economia do jeito que foi. São 25 anos com a mesma moeda. Estávamos acostumados com um vaivém de muda moeda, muda taxa de câmbio, muda tudo. E de surpresa. Ninguém imaginava que fosse possível uma certa tranquilidade. O Real deu uma certa tranquilidade ao país. O salário, no fim do mês, você recebia menos do que imaginava. Como é que se calculava orçamento? Era palpite. Qual seria a taxa de inflação do ano que vem? Sei lá. O Congresso mudava, aumentava a receita e aumentavam os gastos também. Era uma grande confusão. Isso foi muito importante para dar uma certa normalidade ao Brasil. Você pode prever o preço real das coisas. Você pode prever o que vai acontecer com mais precisão, o dinheiro de que pode dispor e tal. Isso veio do real.
Vivemos um período de juros baixos, inflação baixa. Por que o país não consegue crescer?
Crescimento é investimento. E investimento depende de confiança. Os fatores de crença e confiança tiveram mais força na vida econômica contemporânea. Expectativas. Não havendo investimento, não há crescimento. Não havendo crescimento, há desemprego, há mal-estar. Não adianta apenas ter a economia estável. Você tem que ter a economia crescendo. A estabilidade é condição. Por exemplo, fui ministro da Fazenda na época de inflação alta. Fui ao Chile, país no qual vivi por muitos anos, e ninguém acreditava que o Brasil estava crescendo. E estava. A inflação não permitia que as pessoas percebessem a taxa real do crescimento. Você pode ter crescimento com inflação. O bom é você ter crescimento sem inflação. Agora, não temos inflação, mas também não temos crescimento. Precisa ter estabilidade, ou seja, confiança, rumo para o país outra vez, para haver crescimento.

O senhor acha que a inflação deveria voltar para ter crescimento?
Não, essa receita, não. Mas há quem diga. Aumenta o consumo, que, aí, aumenta investimento. Não acontece.

O Lula fez isso…
Eu sei, e a Dilma, mais do que o Lula, né? Nova matriz econômica. Não dá certo. Não dá para reinventar a roda. A roda é redonda. Foi inventada há muito tempo.

O presidente Jair Bolsonaro veio com uma proposta de moeda única do Mercosul. O país está preparado para isso?
Não. Ele mesmo já recuou. Isso aí é uma bobagem. Eu me lembro que o presidente (argentino Carlos) Menem falava muito nisso, e por quê? Porque a Argentina estava mal. Então, vamos segurar o irmão que tem mais juízo, no caso, o Brasil. A ideia de ter uma moeda única do Mercosul pressupõe outras coisas, que haja um Banco Central comum, políticas macroeconômicas comuns, a mesma taxa de juros. Sem isso, não tem como. Requer uma convergência de políticas econômicas que nós não temos. Não tem base.

Mesmo se ambos quisessem, não daria? Por que não dará certo, se na Europa deu?
Se você não tem a mesma política fiscal, como é que você segura? A Europa tem. Por quê? Fizeram um Banco Central comum. Na verdade, o marco alemão virou o euro na Europa. Convergência macroeconômica. E eles reclamam até hoje disso, porque exige a mesma disciplina fiscal. Bruxelas tem mais força do que Paris. Aqui, quem vai ter força? É Brasília? E Buenos Aires? Assunção?  Não funciona.

Em relação ao real, houve algum momento em que o senhor achou que não daria certo?
Quando fizemos o Plano Real, o Brasil estava cansado de planos. A grande diferença entre o real e o cruzado: eu diria duas coisas fundamentalmente. Aprendemos que, sem uma política fiscal consequente, a moeda não se mantém. Ou seja, se não segura o gasto, se não se põe em ordem as finanças públicas, não se mantém. Segundo, sem credibilidade, as coisas não vão. Quando fizemos o real, já sabíamos disso, porque muitos que trabalharam no plano atuaram no cruzado e em planos anteriores. Então, eles sabiam que tinha que haver uma política, que não é um ato, é um processo. Leva tempo para se estabilizar. E talvez tenha sido uma característica do Real. Anunciamos com antecipação o que íamos fazer, para ganhar credibilidade.

Houve o anúncio da URV com antecedência…
O que era a URV (Unidade Real de Valor)? Uma sinalização de que a moeda pode ser estável. A URV estava estável e a outra moeda, não. E você escolhe: vai querer seu salário em URV ou na moeda corrente? Não foi obrigado. As pessoas optaram. Demos liberdade. Era uma espécie de plano mais didático, explicar para o país o que vai acontecer. Uma vez, fui ao Silvio Santos, ele me chamou no camarim e disse: explica o real. Expliquei e ele pediu: repete. Pensei: “Ih, ele não está entendendo nada”. No auditório, ele deu um show e explicou melhor do que eu. É a capacidade de se comunicar. É importante. Você tem que ganhar a população, não é ganhar o mercado. O mercado, você ganha quando ele ganha dinheiro. A população, você ganha quando ela vê que aquilo é bom para ela. O real deu certo porque a população sentiu o benefício e porque o governo fez uma programação, que não foi fácil. Tinha que privatizar banco público, porque alguns bancos estaduais viraram emissores. Tinha que ter uma disciplina nos aumentos de salários, porque, senão, de novo, o consumo explode e não tem oferta. Enfim, não é uma coisa simples. É um processo. O presidente da República, na época, era o Itamar Franco. Ele me deu carta branca e ajudou muito. Não que entendesse da mecânica, como estava funcionando. Mas ele percebeu e dava poder e dava confiança. Isso é fundamental. Se você não tem a confiança do país, não faz nada.

Que paralelo o senhor faz da confiança que o presidente Itamar lhe deu com a que o presidente Bolsonaro dá ao ministro Paulo Guedes?
Vejo o ministro Paulo Guedes de vez em quando na tevê. Ele crê, é uma coisa importante. Não vou discutir se está certo ou está errado, mas ele acredita naquilo. Só que não tem jeito para lidar com o Congresso. A diferença que havia naquela época em que eu fui ministro da Fazenda é que eu era senador. Então, eu me reunia com as bancadas todas, discutia com elas. Eu sabia o jeitão, e o Itamar, também. Agora, eu acho que é uma situação mais voluntariosa do que propriamente de conquistar o apoio. Essa é uma diferença importante. Em segundo, fomos pouco a pouco estabelecendo regras fiscais que funcionaram. Aqui, ainda estamos para ver se vão funcionar ou não. Primeiro teste importante é a Previdência. Se passar de uma maneira aceitável, já dá um certo respiro. Agora, repito: não são os mercados, porque o mercado vai colocar logo outro sarrafo. Terminou a Previdência, eles vão pedir a tributária. Na linha: ou faz a tributária ou o Brasil acaba. O Brasil não vai acabar. Tem que ter a confiança da população. A população tem que perceber que este governo vai nos levar para algum futuro. O presidente Itamar opinava muito no começo. A bolsa oscilava. Depois, perceberam que não era para oscilar em função das opiniões dele, porque ele não usaria a vontade dele para atrapalhar um processo econômico. Aqui, nós não temos muita certeza ainda. A gente vê, de vez em quando, uns impulsos presidenciais que assustam. Dá a impressão de que o ministro da Fazenda não tem tanto poder quanto é necessário para levar adiante o país.

Então, que conselho o senhor daria ao presidente Jair Bolsonaro?
Eu não dou conselho nenhum.

Mas o senhor já foi presidente, sentou-se naquela cadeira por oito anos. O ex-presidente Sarney, numa entrevista ao Correio, disse que o presidente tem que se moldar à cadeira e não querer que a cadeira se molde a ele…
Gostei bastante da entrevista do presidente Sarney, ele tem vivência das coisas. Realmente, o presidente tem que entender quais são os constrangimentos do cargo. É difícil ser presidente. O pessoal quer muito ser presidente, mas não é bom, não. É uma dureza. O presidente atual, qualquer presidente, tem que entender, primeiro, que o Congresso tem força. Os partidos são fracos. O Congresso, não. É difícil, porque os partidos não têm tanta força assim, mas o Congresso, como instituição, tem. Você tem, portanto, que respeitar o Congresso. Tem que entender que as instituições do Estado brasileiro são antigas e funcionam. O Itamaraty, as Forças Armadas, o Judiciário. Você tem que entender que eles têm a lógica deles. E tem que respeitar, compreendê-los. E não expulsá-los. E o principal: o povo conta. Você tem que falar com a nação. Tem que ganhar a nação, ter o respeito do Congresso, ser capaz de falar com o Congresso e entender que existe a burocracia pública, que ela tem o seu valor também. Tem que se moldar a isso, o que o presidente Sarney, simbolicamente, chamou de se moldar à cadeira. É verdade. A cadeira são as instituições. A principal das quais é o povo. Você tem que ter a confiança do povo. Tem que dar tempo ao tempo para ver se a pessoa entende esse processo.

O senhor enfrentou várias crises externas, e o mundo está num processo de mudança muito grande. Como o senhor vê isso? Onde entra o Itamaraty nessa questão?
Enfrentei crises financeiras graves. As economias capitalistas têm seus vaivéns. Neste momento, não estamos enfrentando uma crise financeira séria. Agora, acredito que é difícil você imaginar que não possa ocorrer alguma perturbação. Mas o Brasil precisa entender também, e aí entra o Itamaraty. Temos uma certa presença, que é limitada. Não é tão grande quanto se imagina, nem tão pequena. É razoável. Essa presença, primeiro, depende de você ter apoio interno. Segundo, na sua região. Só assim você tem peso maior no mundo. E você não pode se deixar levar por ideologias. Há interesses concretos. Interesses do país que não tem que ver automaticamente com ideologias. É possível que, agora, por exemplo, Estados Unidos e a China se desentendam mais do que se desentenderam até aqui. O Brasil tem uma posição desse ponto de vista boa, porque nós não precisamos tomar partido. Tomou partido, é um problema.

Mas já está tomando...
Eu sei, mas acho que está errado. Tomar partido é você se arriscar a perder a guerra. Para quê, se a guerra não é nossa? O Itamaraty nunca teve uma tradição ideológica, sempre teve uma tradição negociadora, não ideológica. Tenho medo dessas visões muito assim, eles contra nós, cristãos contra os não cristãos, porque esse é um mundo fantasmagórico. O Itamaraty tem outra tradição, não só de entendimento entre os países, entre os Estados, mas também de defesa, como é natural, dos interesses brasileiros. São, no caso, basicamente comerciais, não são bélicos. 

Essa pauta mais ideológica, então, o senhor rechaça?
Não é a correta. É claro que, em algumas circunstâncias, você… Nós tivemos contra o Eixo, contra o nazismo. Mas não é o que está se apresentando no mundo de hoje. Não é uma guerra tão acirrada, um lado é civilização, o outro é anticivilização. Não é. São dois modelos de organizar politicamente os países. E que se baseiam em sociedades também diferentes. Vão ser sempre diferentes, porque, apesar da globalização, que é um fato, você tem a existência da cultura dos países, que é variável. E temos que entender esse processo da diversidade do mundo. E o Brasil não tem por que imaginar que o mundo é cara ou coroa. Não é.

E em relação a Israel, esse alinhamento automático?
Eu acho errado. Fui a Israel algumas vezes, tenho doutor honoris causa de Tel Aviv e de Jerusalém. Tenho boas relações com Israel. Como presidente, isso não me levou nunca a ter relações ruins com os árabes. Pelo contrário: temos interesse grande, vendemos muito para os árabes, temos muitos de origem árabe vivendo no Brasil, como também de origem israelense. O Brasil tem essa qualidade de aceitar a diversidade. Então, por que tomar partido? Eu era presidente e nem tinha percebido: meu ministro era judaico de origem, o outro, secretário-geral, era árabe, o Celso Lafer e o Osmar Chohfi. Não tenho sensibilidade para esse tipo de diferença. Para que criar isso? Eu acho errado.

Quanto à reforma da Previdência, seu governo tentou fazer e perdeu por um voto. Ela é, hoje, mais necessária do que era naquela época?
É só ver os dados para saber que é necessária. E essas reformas no Brasil não se fazem de supetão, elas vão acontecendo. Quando perdemos por um voto a idade mínima (esse voto foi do então deputado Antonio Kandir, do PSDB), o que fizemos? O fator previdenciário foi a Solange Vieira quem inventou. Já derrubaram duas vezes, e o presidente vetou, inclusive o Lula teve que vetar, porque precisa um freio. Já que não tem a idade mínima, faz-se uma composição entre tempo de contribuição e tempo de trabalho, que é o fator previdenciário. Tem que fazer. Vai se avançando aos poucos. Mas chegou a hora em que não dá para ser aos poucos, tem que se dar um passo maior. Conversei com o relator da reforma previdenciária, ele tem noção das coisas, o Samuel Moreira. Não posso dizer que da sua inteireza esteja correta, na questão do campo, tem que olhar com atenção. Tem que olhar mais pelo lado da igualdade do que do fiscal. O fiscal é importante, mas, para o povo, o importante é ver que estamos nos aproximando uns dos outros. A direção da reforma é correta. É preciso avançar com essa pauta. E nisso não se pode pensar em governo e oposição. É o interesse nacional.

E a capitalização?
É um problema. No meu tempo, já se falava disso. Tinha o Chile. Mandei calcular. Naquela época, custaria um PIB para poder pagar o processo de transformação. Não sei como está sendo proposto agora. O relator tirou da pauta porque há uma reação grande a isso. O problema é como você faz com quem não capitalizou até agora. Vai começar do zero? Não pode. Então, ou você tem dinheiro para financiar ou... No Chile, eles tiveram numa certa altura e, mesmo lá, houve muito problema com a capitalização. Então, acho que tem que ir com jeito, tem que estudar melhor.

E a reforma tributária?
Minha experiência de reforma é que, quando você quer mudar tudo, não se faz nada. É melhor você ver qual a reforma que terá consequências ao longo do tempo. Os americanos chamam de tipping point (ponto da virada). O Everardo Maciel era mestre em produzir algumas reformas, então, fizemos algumas. Mas como é que faz? Tem as burocracias estaduais, os governadores, isso aqui é uma Federação. Isso introduz o elemento de distorção. Em segundo lugar, tem sempre aquela luta entre a contribuição e o imposto. Tem o que divide com os estados e o que não divide. Divide os impostos, aumenta as contribuições. Então, foi criando um sistema que é esse. Não que o peso em si seja grande. Vivi nos Estados Unidos, na Europa. O imposto lá é de amargar. Mas é mais simples de você pagar. Você paga, reclama. Acho que tem que mexer. Agora, eu mexeria com jeito, isto é, quais são os pontos que podem levar a mudanças. Para isso, tem que ter um projeto, de como será no futuro, o ideal. E tentar chegar lá aos poucos. A vontade do presidente não é lei. Você viu agora que o Senado derrubou a questão de armamento das pessoas. É assim.

O senhor concordou com a decisão em relação às armas?
Eu sou contra esse negócio de distribuir arma para todo mundo. Só aumenta o risco de usar mal a arma. Arma quem tem que ter, e boa, são as forças de segurança, o Estado. Você armar a população não resolve.

No tempo do Plano Real, havia uma divisão PT- PSDB. A última eleição acabou com a polarização entre os dois partidos, mas não com a polarização em si. Como retomar o diálogo?
No meu tempo, de fato, eu mesmo tentei muitas vezes aproximação com o pessoal do PT, mas era quase impossível por uma razão eleitoral, porque atacando tem mais chances eleitorais. Bem, mas era possível obter maiorias. Com três ou quatro partidos, você fazia maioria para as reformas constitucionais. Hoje, você tem mais de 30 partidos. E quem tem mais de 30 não tem nada. Há uma fragmentação muito grande. E o PSL só é o principal partido porque o presidente ganhou e arrastou consigo. Mas o que quer dizer o PSL? Não sei. Pode ter um nome qualquer, mas não significa muita coisa. É difícil organizar a chamada base, o apoio ao governo. No nosso caso, você tinha poucos partidos, você conseguia. Hoje, eu tenho impressão de que não. Ao mesmo tempo, naquela época, você tinha um discurso ideológico de nós e eles, que veio do PT. Por razões táticas, eleitorais. Mas, agora, é mais do que isso: é uma visão ideológica, tem o lado bom, tem o lado mal, e aí pinta o inimigo de diabo. E se é o diabo, vamos expurgá-lo, vamos matá-lo. Isso é ruim para o país, porque não permite a convivência democrática e põe em perigo a racionalidade. Quando o próprio governo toma um lado em que o mundo se divide entre amigo e inimigo, é complicado. Lula, por exemplo, era da boca para fora, é uma coisa. Mas quando a pessoa acredita nisso, é pior.  Não creio, num país como o nosso, tão diversificado, com tanta mobilidade social, e num mundo como o atual, com grupos diferentes de estruturas partidárias e de governo, que a internet permite ligação, que isso possa prevalecer. 

Mas o senhor acredita que é para quê?
Eu acho que é para nada. A sensação que dá é que é para nada. Para onde que nós vamos? Ninguém sabe. Não estou acusando A, B ou C, porque não é só no Brasil. Você vive um momento difícil das estruturas políticas organizadas, os partidos. E também não se sabe como governar na democracia sem partidos. Democracia direta? Como? É uma complicação.

Mas é o que se está tentando fazer…
É, consulta no Twitter e tal. Eu uso Twitter para treinar, porque tenho um gosto intelectual de poder, com poucas palavras, dizer alguma coisa, o que é difícil. Mas, no geral, o Twitter não é para dizer alguma coisa. É para expressar um sentimento. E quem governa não pode viver só à custa do sentimento assim, que várias pessoas produzem. Tem que ter um rumo, um caminho, uma persistência no tempo. Acho que é preciso buscar forças de aglutinação e um caminho em que se aceite o outro. Você escolhe, na eleição, pela maioria. Mas, depois que você é governo, não pode governar para um setor. Tem que governar para um conjunto.

Como o senhor avalia o Congresso mais independente em relação ao governo?
No nosso sistema, o Executivo é quem tem a agenda. É presidencialista. A cabeça das pessoas é olhar para quem está lá em cima. E lá em cima é o presidente. Nosso sistema cultural e político é presidencialista. O Congresso dar as cartas é no sistema parlamentarista, que nós não temos. E, no momento, com o desprestígio dos partidos e a fragmentação deles, torna-se mais difícil ainda.

Mas o Congresso já anda pensando em parlamentarismo…
O Congresso pensa, mas já houve uma tentativa, num dado momento, que não deu certo. Não vai dar certo de novo. A população não tem essa cabeça, é presidencialista. Então, por isso, penso que, se fizesse o voto distrital misto, seria mais oportuno do que pensar em parlamentarismo. É muito difícil que o Congresso defina uma agenda. Hoje, está definindo pela ausência da função do Executivo, que é definir uma agenda. O ministro da Fazenda tem agenda, mas não basta. Tem que ter agenda nacional. Cadê? É essa transição que não se sabe para onde vai.

Surgiram partes de diálogos atribuídos a Sérgio Moro em que o seu nome aparece como forma de dar um ar de imparcialidade. Como o senhor viu isso?
Com naturalidade. É curioso. Parece que o juiz Moro teria dito ao Dallagnol, a não sei quem, que era melhor tomar cuidado porque eu era a favor e tal. Mas eles mandaram apurar e o juiz disse que a acusação estava prescrita porque se referia a uma campanha de não sei quando. Isso se referiu a um depoimento da Odebrecht e mandei botar no meu Facebook na íntegra, para que se veja o que ele diz lá. Como ninguém sabe o que disse que fica: “Ah, tem um depoimento e tal”. Tem nada! Essa coisa toda é ruim, porque o Brasil, em vez de se orientar por um caminho, fica aí nessa questão: roubou, quem não roubou. Roubou, vai para a cadeia. Segue a lei.

O senhor achou correta a prisão do ex-presidente Lula?
Não sou juiz. Acho que tem que respeitar os procedimentos legais. Não gosto de ver ninguém na cadeia. Vou dar o contrapeso: Eduardo Azeredo está na cadeia. Vinte anos. O que ele fez? Quase nada, ou nada. Vou fazer o quê? Não tem jeito. Lula é a mesma coisa, está na cadeia, condenado. Eu já fui depor três vezes, a pedido do advogado de defesa do Lula. Três vezes. O que eu falo? Falo sobre o que eu sei, não sei do governo Lula. Aqui, na minha Fundação, podem revistar o que quiserem, não tem nada. Alguém deu dinheiro? Claro que deu. E continua dando. Ainda bem. Dinheiro público? Não, dinheiro privado. Aqui é fundação, tem o fiscal, que vê a conta aqui. Não tem conversa, é transparente.

O ministro Sérgio Moro pode ser uma aposta para o pós-bolsonarismo?
Não saberia dizer. Não acho que ele tenha esse jeitão. Ele é juiz. Um pouco duro no modo de se expressar. É claro que as pessoas superam essas dificuldades, eu era professor e ganhei a eleição. Vi o Moro poucas vezes, em ocasiões formais, não sei como ele é, realmente. Acho que ele procura ser uma pessoa coerente com as coisas que ele vê, toma decisão. Você pode estar de acordo ou não, mas tem primeira e segunda instâncias. Isso é importante, seguir o procedimento legal.

E o PSDB? Como o senhor vê o partido do Plano Real para cá?
Por que o PSDB cresceu? Ele nasceu como uma costela do MDB. Eu era líder do MDB. Mário Covas era líder no Congresso, e nosso candidato. Os partidos no Brasil sobrevivem nas eleições quando tem quem puxe o voto. O Brasil é muito personalista. Não é que os partidos não tenham peso. Têm. Eles fazem as candidaturas. Os partidos que tiverem candidato vão sobreviver. Isso vai salvar os partidos como partidos? Não creio, depende de como eles façam. O PSDB ganhou eleição comigo, a bancada ficou enorme, em vários estados, continuou ganhando. Agora, nessa última eleição, perdeu bancada. Onde é que tem? São Paulo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, onde tem governo. Isso vai pesar? Pode ser que sim, se tiver candidato. Sempre é assim.

Onde que o partido errou, que não conseguiu voltar à Presidência da República?
O PSDB, mesmo no meu governo, quantas vezes chamei os líderes, os deputados e disse: “Olha aqui, sei que o governo vai ganhar a votação, mas, se vocês não defenderem, o PSDB não será identificado com quem ganhou”. O PSDB ficou sempre com uma certa preocupação com o PT. O PT dizia: “Está errado, é neoliberal”. O pessoal ficava receoso de defender. Não defendeu nunca. Nunca é forte demais, alguns defenderam. Mas, no conjunto, não assumia como própria a bandeira que era do governo.

Então, os candidatos erraram?
O partido errou. Vou dar um exemplo simples: nós fizemos o Bolsa Escola. Quem começou foi o Cristovam (Buarque), que era do PT, e o Grama (José Roberto Magalhães Teixeira), prefeito de Campinas, que era do PSDB. Eu transformei em Bolsa Escola nacional. Aquilo virou o Bolsa Família. Foi a junção das bolsas que tínhamos anteriormente. O PSDB nunca capitalizou isso. O PT capitalizou. É preciso capitalizar o que é feito. O PSDB governa São Paulo há mais de 20 anos. Compara a situação financeira de São Paulo com a de vários estados. Está melhor. E não capitalizamos. Falta o eu sou Corinthians, eu sou Flamengo, eu sou Palmeiras, essa coisa. Agora, todos os partidos foram alcançados pela tragédia da corrupção. O povo também ficou com raiva. Como se dizia antigamente: “Até tu, Brutus?!” Houve uma decepção grande. Até que ponto? Vamos ver na próxima eleição. Aí, vai depender da capacidade que têm os líderes.

João Doria é a aposta do PSDB para 2022?
Não sei se é aposta, mas é governador de São Paulo. E é ativo. É ativo nas redes, e tudo mais. Haverá gente com mais presença contemporânea do que ele? Não sei. No PSDB ou fora do PSDB? Não sei.

A preço de hoje, o nome é ele?
Não quero avançar o sinal. Olhando por esses fatores que eu disse, sim. O que você tem? Três governadores. É pouco. Mas o Brasil varia muito, e com a rede social, você não pode prever com tal antecipação o que vai acontecer.  Podem surgir fenômenos novos. O próprio Bolsonaro surgiu sem partido.

Em relação ao presidente Bolsonaro, ele ora diz que é candidato, ora que não é…
É possível que ele não queira ser, mas vai ter que ser porque os amigos dele vão querer que ele seja. Acho que é mais prudente imaginar que ele estará no páreo.

E o Centrão e a oposição?
O Centrão, no meu tempo, era um pessoal mais fisiológico. O que se chama de Centrão hoje não é bem isso, é um pouco diferente. Quem é governo? Difícil dizer. Vejo que os presidentes da Câmara e do Senado têm mostrado equilíbrio, capacidade de condução. E como vai conduzir? Leva todo mundo junto, inclusive o chamado Centrão. Oposição? Neste momento, o governo se atropela sozinho. Não tem oposição organizada. Agora, é preciso que haja oposição de verdade, que apresente um projeto alternativo, se não, não tem.

E essa volta dos militares ao poder, como o senhor vê esse protagonismo deles pela primeira vez desde o regime de 1964?
Em 1964, você tinha realmente uma divisão no mundo: guerra fria. E os militares daquela época tinham um projeto para o Brasil. Não é o caso agora. Nós não temos guerra fria, embora haja essa tensão entre Estados Unidos e China, mas é muito diluída em comparação com o que foi no passado. E nem os militares têm um projeto de poder diferente para o Brasil. Não tenho preconceito contra militares. Meu pai foi general, meu avô foi marechal. Acho que temos uma visão errada do que sejam os programas de defesa, temos que prestar atenção do que seja o papel dos militares, o que pode ser muito positivo. O risco que eles podem correr é o da confusão. Como o governo nomeia muitos militares, pode haver uma confusão entre o governo e a instituição. Isso é perigoso para a instituição, não para o Brasil.

Por que é perigoso?
Porque, se o governo for mal, a instituição vai ser responsabilizada por ter ido mal. Um certo distanciamento é necessário. Agora, é claro que o Bolsonaro era tenente, virou capitão, é claro que ele conhece mais o pessoal militar. Entendo a dinâmica, mas acho que é preciso separar bem. Os militares têm, até agora, como instituição, tentado separar. 

O senhor acha que existe algum risco à democracia?
Na democracia sempre há risco. Tem que prestar atenção. Não é só aqui. É no mundo todo. Com essas mudanças na sociedade, como é que vamos compatibilizar liberdade com organização? Rede social com partidos? Não está fácil de entender. Isso pode afetar a forma da democracia? Pode. Não é necessário que afete, mas pode. É preciso preservar a liberdade, respeitar a individualidade e entender que há um interesse que é coletivo. Como é que se faz isso? Precisa de liderança. O momento que nós atravessamos, que é de indecisão, não tem muita saída. Ou você encontra quem expresse um caminho, ou você fica marcando passo. O risco maior nosso não é que a democracia sofra um episódio qualquer que a destrua. É de ela não dar certo, não avançar, ficar marcando passo. O pior é a desilusão do povo com a democracia. Se houver isso, aí vai mal. Não chegamos a esse ponto.

Há uma insegurança muito grande também em relação à geração de empregos, aqui e no mundo...
Primeiro, a economia precisa de credibilidade para haver investimentos, público e privado. E mais privado que público, no nosso caso. Temos um campo enorme, que é a infraestrutura, que tem que ser refeita. Tem capital sobrando no mundo. Agora, para atrair, nós temos que acreditar em nós próprios, no nosso rumo. Há uma mudança, que é estrutural, na organização da produção no mundo contemporâneo. Na França, uma parte das pessoas que estão revoltadas tem medo. Medo do futuro. Aqui, como não chegamos a esse ponto de avanço, não sei se as pessoas têm tanto medo do futuro. Têm medo do presente, porque a taxa de desemprego cresceu muito. No meu tempo, quando chegou a 7%, foi uma gritaria infernal. Agora, está o dobro.

O senhor é professor e a gente vê um embate grande entre governo e universidades. Que avaliação faz da dificuldade do governo em deslanchar na educação?
Há desconfiança. E eles deram sinais que aumentam essa desconfiança. Primeiro, muda ministro; segundo, não sabe muito bem o que o ministro vai fazer, ameaça. Lidar com universidade é sempre difícil. Para mim, também foi. Especialmente, porque, na minha concepção, é preciso ampliar muito o ensino fundamental. Não quer dizer que você não vá olhar para a universidade. O mundo do futuro depende de ciência e tecnologia, então, tem que olhar para a universidade. A universidade no mundo contemporâneo é básica. Qual a vantagem que os Estados Unidos têm? Fui professor lá. Você vai para a universidade americana, ela não desconfia, nem do governo, nem da empresa. É autoconfiante. Tem autonomia real, parceria. Aqui, não. As pessoas desconfiam umas das outras. Resultado: a universidade aqui se enquista nela própria e fica se defendendo. Quando o governo começa a jogar uma flecha, é pior. Tem que fazer o movimento contrário. É preciso dar sinais mais positivos para a universidade. A questão fundamental para o professor não é só salário. Fui professor em Cambridge, na Inglaterra. Comparando com o que eu ganharia na USP — fui aposentado pelo AI-5, e é a única aposentadoria que eu tenho —, não ganharia muito menos do que em Cambridge. Mas, em Cambridge, você tinha uma dignidade, valia a pena. Aqui, houve a perda da dignidade do cargo. Em parte, porque a sociedade não valorizou suficientemente. E o governo, quando não valoriza, aumenta esse desprezo. Está errado. 

E em relação ao Judiciário? Como o senhor vê o atual ativismo?
Isso foi plantado por nós na Constituição de 1988. Nós quisemos dar força e acesso ao Judiciário. Queríamos reequilibrar, porque os governos anteriores eram autoritários. Se sabia que haveria uma certa judicialização da vida política, inclusive. Houve. Na medida em que o Congresso se encolheu, o Judiciário avançou. Agora, o Congresso está se espalhando de novo. Vamos ver o que vai acontecer.

E o Ministério Público?
A mesma coisa. Criamos um quarto poder, demos ao Ministério Público o status de independência. E que cada um assumiu como se fosse dele, pessoal, não da instituição. Acho bom que haja um Ministério Público independente. Não tenho uma visão pessimista do avanço institucional do Ministério Público e do Judiciário de um modo geral. Faz parte do jogo democrático ter um Judiciário forte.

E a lei de abuso de autoridade?
Acho que tem que haver. É preciso evitar que haja abusos e é bom que haja limites. A democracia supõe pesos e contrapesos. Limite para tudo. Ninguém é dono do pedaço.

Qual o segredo de o senhor chegar aos 88 anos com essa vitalidade?
Não sei. Primeiro, é genético. Segundo, ter uma vida mais ou menos regrada. Faço exercício, bebo pouquíssimo, como cada vez menos. Agora mesmo, fiz vários exames, não tenho nada. Mas a velhice existe. Não é uma ladeira que vai devagarinho. É uma escadaria, você vai descendo, desce um degrau, diminui a energia. É muito importante trabalhar. Quem tem alguma formação intelectual tem uma vantagem: independe dos outros para viver bem. Cada um tem que saber o momento em que está vivendo. Não adianta querer viver o que foi. Tem que olhar para frente. E o final mesmo é morrer. Mas, até lá, precisa produzir. Enquanto tiver uma capacidade intelectual, usa, né? Eu, com um computador na frente para escrever e livro para ler, estou feliz. E tenho mulher, né? Relativamente nova. Isso ajuda (risos).
Fonte: Diário de Pernambuco