Projeto que prevê flexibilização das regras para posse de
arma de fogo avança na Câmara. Hoje, 63 milhões de pessoas estão aptas a comprar
uma, caso a venda seja liberada. Especialistas preveem consequências
desastrosas.
Promessa de campanha do presidente eleito, Jair
Bolsonaro, a revogação do Estatuto do Desarmamento deve ganhar força com a
posse dos novos parlamentares, em fevereiro. A medida, uma das mais polêmicas
em debate na vida política nacional e na sociedade, coloca em jogo as
estratégias de segurança pública e pode lançar o Brasil num caminho incerto no
enfrentamento da violência. Especialistas criticam a iniciativa, apontando que
as estratégias para combater o crime devem passar por melhorias no sistema de
investigação, pelo aumento do efetivo policial e pelo avanço nas políticas
sociais. Nos bastidores, deputados e senadores desta e da próxima legislatura
se articulam para fazer a proposta avançar.
Um cruzamento de dados, realizado pelo Correio, com base
no cadastro nacional de habilitados e em informações levantadas pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), mostra que se o projeto de lei que trata do assunto
for aprovado no Congresso, pelo menos 63 milhões de brasileiros estarão aptos a
comprar uma arma de fogo. Atualmente, a mais avançada proposta que pretende
revogar as leis que endurecem a obtenção de porte de armas é o projeto de lei
3.722/2012, de autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC). O texto
está pronto para ser votado em plenário. Há mais 97 propostas sobre o
assunto.
Pelo projeto, para conseguir posse de arma de fogo é
necessário ter 21 anos completos e realizar teste de aptidão psicológica. Outro
requisito é não ser alvo de acusação na Justiça ou investigação por crime
doloso. Esses pontos podem ser alterados durante a votação no plenário. De
acordo com o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), o Brasil tem mais de
66 milhões de pessoas com mais de 21 anos autorizadas a dirigir.
Para obter a Carteira Nacional de Habilitação, é
necessário que o motorista realize teste de aptidão psicológica, semelhante ao
que seria aplicado para obter a posse de arma, caso ocorra a flexibilização das
regras. O motorista deve repetir o exame a cada cinco anos para renovação da
autorização para dirigir.
De acordo com dados do “Relatório Justiça em Números”, em
2016, 3 milhões de novos casos criminais ingressaram na Justiça, sendo que 1,4
milhão de execuções penais estavam pendentes de cumprimento ao fim do mesmo
ano.
Pelo Twitter, Rogério Peninha Mendonça disse que foi
procurado por Jair Bolsonaro, que pediu que a apreciação da proposta fosse
adiada até que deputados e senadores eleitos tomem posse. “Acabo de receber
ligação do presidente Jair Bolsonaro. Ele concordou em deixarmos para o ano que
vem a votação do projeto de minha autoria que revoga o Estatuto do
Desarmamento”, escreveu. Na próxima legislatura, que assume em fevereiro, o
partido de Bolsonaro, o PSL, será a segunda maior bancada da Câmara, com 52
deputados, ficando atrás apenas do PT, que tem 56 cadeiras.
Riscos
Diversos estudos projetam um cenário possível, caso o
número de armas em circulação aumente no país. Atualmente, as forças de
segurança têm grande dificuldade de impedir a entrada de armas de fogo pelos 17
mil quilômetros de fronteira terrestre. O especialista Bruno Langeani, gerente
do Instituto Sou da Paz, destaca que existe uma ligação clara entre o aumento
do número de armas na sociedade e o crescimento da violência. “Essa correlação
já foi comprovada cientificamente. Quanto mais facilitada é a posse de armas,
maior a violência letal”, frisa. “Estudo realizado pelo instituto apontou que
64% das armas apreendidas em 2011 e 2012 em São Paulo tinham sido fabricadas
antes do Estatuto do Desarmamento”, diz.
De acordo com dados do Mapa da Violência, em 1980 foram
registradas 6.104 mortes intencionais por armas de fogo. Na época, de acordo
com o IBGE, o país tinha 120 milhões de habitantes, frente os 208 milhões
atuais. Em 2003, ano em que o estatuto foi aprovado, esse número fechou em
36.115. A taxa de crescimento de assassinatos do tipo durante o período
(1980-2003), foi de 8,1% ao ano. Entre 2003 e 2014, o índice subiu 2,2%. Os
últimos dados, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, revelam que entre
2016 e 2017, o número de mortes intencionais por arma de fogo cresceu 2,9%. De
fato, o estatuto não provocou queda no número de mortes violentas, mas
desacelerou o crescimento deste tipo de crime.
“Invasão” estrangeira
A bilionária indústria do setor de armas já se prepara
para avançar sobre o território nacional. Atualmente, apenas profissionais de
segurança pública, procuradores, juízes, vigilantes em serviço, guardas
municipais e outros grupos menores têm acesso facilitado à posse e porte de armas.
Mas a abertura de mercado, tanto nas forças de segurança quanto no meio
privado, atrai a cobiça de grandes empresas armamentistas.
Uma audiência pública realizada pela Polícia Rodoviária
Federal (PRF) em 18 de outubro do ano passado, na sede da instituição, contou
com a participação de nove empresas. Na ata da reunião estava o nome de
representantes de empresas de diversos países.
De acordo com o documento, o encontro teve como objetivo
avaliar a capacidade nacional e internacional para o fornecimento de armas
voltadas a instituições brasileiras. No local, além de empresas brasileiras,
como a Taurus e a estatal Imbel, compareceram representantes de fabricantes,
como Glock (Áustria), Beretta (Itália), Smith & Wesson (EUA), Sig Sauer
(Alemanha) e CZ (Tcheca). Atualmente, a Taurus mantém o monopólio da indústria
de armas no país, mas esse cenário pode mudar, à medida que interlocutores de
Bolsonaro afirmam que ele pretende abrir o mercado brasileiro para o mundo.
Sem preocupação
O presidente da Taurus, Salesio Nuhs, prevê aumento na
demanda pelos equipamentos. “Independentemente de mudanças no Estatuto do
Desarmamento, acreditamos que a eleição do novo presidente, certamente, vai
aumentar a procura dos cidadãos brasileiros por armas de fogo para legítima
defesa, proteção da família e da propriedade. Isso porque, na prática, a
maioria da população desconhecia que era possível comprar armas de fogo no
Brasil”, destaca.
Salésio também relata não se preocupar com a entrada de
fornecedores estrangeiros no mercado nacional. “A Taurus é uma empresa global,
exporta para mais de 85 países, portanto; compete com as maiores empresas
de armas nos mercados de exportação, que são extremamente competitivos, e está
entre as maiores fornecedoras do mercado dos EUA”, disse.
Desarmamento na mira
O PL 3722/2012, que avança na Câmara, revoga o Estatuto
do Desarmamento e pode permitir o acesso de milhões de brasileiros
a arma de fogo. Veja o que prevê o texto:
Requisitos
» Ser maior de 21 anos
» Não ter condenação por crime doloso
» Não ser alvo de investigação criminal (com dolo)
» Passar em teste psicológico
» Realizar curso de tiro
Cenário atual
» Portadores de Carteira de Habilitação com mais de 21
anos: 66.610.131
» Alvos de ações criminais em 2016: 3 milhões
» Em média 2,5 milhões de novos casos criminais deram
entrada na Justiça por ano
Arsenal
» O Brasil possui 8,5 milhões de armas ilegais circulando
nos estados, de acordo com projeções de especialistas
» 3,8 milhões dessas armas estão nas mãos de criminosos e
são usadas em assaltos, homicídios e sequestros
» Em todo o país, 6,8 milhões de armas registradas estão
circulando de forma legal. Esse número inclui o armamento de polícias, empresas
privadas, colecionadores, caçadores e cidadãos que têm arma para se proteger
» 119.484 armas de fogo foram apreendidas pelas forças de
segurança em 2017
» 94,9% das armas apreendidas no ano não estavam
cadastradas no sistema da Polícia Federal (Sinarm)
» 13.782 armas registradas foram perdidas, extraviadas ou
roubadas, o que equivale a 11,5% das armas apreendidas pelas polícias em um ano
» As armas legais que vão parar nas mãos de criminosos
representam um mês de trabalho das polícias para retirá-las de circulação
Fontes: Denatran, CNJ, Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, Câmara dos Deputados . Agencia Brasil