Notícias

6/recent/ticker-posts

[Opinião] Os paraísos são artificiais, sua construção é política



No último dia na cidade de Paris, após dois meses, este articulista acorda em uma fresca manhã de verão e sai à rua, à procura de uma boulangerie aberta. A cidade ainda está acordando e revela sua beleza a cada passo – uma praça limpa e arborizada, um jasmineiro florido e perfumado explodindo por detrás de um muro baixo, uma rua tortuosa que permite à imaginação flutuar entre devaneios.

No entanto, todo esse urbano romantismo esconde sinais inequívocos das barbáries cometidas durante a história da cidade. Barbáries rememoradas por inscrições em placas de pedra acima dos portais de muitas escolas primárias: aqui levaram trezentas crianças para um campo de concentração, e em pátios de prédios: ali reuniram mais de três mil judeus, antes de entregá-los ao exército nazista.

E há sinais ainda mais antigos – aqui, no século XV, lincharam uma mulher considerada bruxa; ali foi queimado na fogueira o líder dos templários; em outro lugar um menino, por acaso o príncipe herdeiro, torturado pela fome e pela reclusão, morreu ceifado pela doença que atingia os miseráveis; há quinhentos anos, por toda a cidade, cerca de oito mil pessoas ligadas à religião protestante foram assassinadas nas ruas desta romântica cidade, em uma noite de um belo verão como este.

Em Paris, a destruição não acometeu somente pessoas. O patrimônio arquitetônico foi objeto de uma longa destruição, por revoluções, guerras e convulsões. Muita pedra foi arrancada e lançada pelas turbas contra poderes hostis às teses humanistas, muitos canhões destruíram os sonhos concretos dos parisienses, que frequentemente foram rebeldes à tirania.

No entanto, a cidade também é resultado de uma longa e repetida reconstrução. A pedra visível aos olhos se erigiu sobre outra pedra mais antiga, testemunha de atos violentos. O subsolo da cidade guarda a conturbada memória urbana, suas paredes guardam brutais segredos. Paris é menos paraíso natural, não obstante a beleza tortuosa do Sena e suas margens, do que paraíso artificial, erigido pela mão humana e concebido por um espírito construtor.

Porque paraísos naturais, a rigor, não existem. A natureza em estado bruto esconde a violenta luta pela sobrevivência, a refrega de espécie contra espécie, de indivíduo contra indivíduo. O paraíso é sempre artificial, pois neste a luta se quer estagnada ou situada em outro patamar. É esse espírito que habita cidades como Paris, e que se traduz pela vontade de uma constante construção, pela imposição da paz urbana, provocando nos olhos do visitante ocasional a ilusão de que tudo sempre foi assim, de que tudo pertence à esfera do acaso e do natural.

No Brasil, louvamos o paraíso natural que pensamos ter, mas que mesmo assim destruímos. O hino brasileiro, que em tempos de copa ouvimos amiúde a turba cantar em estádios longínquos, está repleto de menções poéticas ao paraíso que somos e que temos. O sol da liberdade, os risonhos lindos campos, os bosques cheios de vida, o gigantismo do território, tudo parece que milita a nosso favor. Esquecemos, no entanto, da artificialidade inerente ao paraíso, e que é pela inteligência política, pela organização das ações e dos poderes, que se constrói um lugar melhor. Fazemos e fizemos sempre o contrário, no passado e no presente.

Nos dias que correm, neste exato momento, trezentos picaretas, os de sempre, no Congresso nacional aproveitam a narcose provocada pela copa do mundo e correm contra o tempo para inverter a lógica construtora e humanista de 88. Da redução de direitos trabalhistas, passando pela redução de dinheiros para saúde e educação, juntam-se ao tortuoso presidente para aumentar a quantidade de veneno nos nossos pratos e o preço da saúde, em uma destruição sem fim daquilo que poderíamos ser. O paraíso passa longe do Brasil, não obstante os milhares quilômetros de praias e os hectares sem fim de matas.

Este articulista se esvai da cidade-luz com o coração feliz pelo acolhimento concedido por sinceros amigos de tantos anos, pelos seus sorrisos e abraços – uma família que ele sem dúvida possui em Paris, paraíso construído pela amizade. Fonte: Folha de Pernambuco