A atuação com essa população
que vive abaixo da linha da pobreza trouxe diferentes desafios para o
estabelecimento do projeto
Aos 80 anos, Simon obteve seu
primeiro par de óculos. Agricultor no Malawi, ele sustenta os 18 netos com a
subsistência do campo, o que rende comida para dez meses do ano. Nos outros
dois meses, precisam optar entre comer uma vez por dia, a cada dois dias ou
mesmo não comer. Com uma renda limitada, é de se espantar que Simon tenha
destinado dinheiro para melhorar a visão, um problema aparentemente pequeno
diante da fome.
O que permitiu, no entanto, ao
agricultor não só descobrir a deficiência na visão, como comprar um óculo de
alta qualidade a um custo de produção de US$ 1 foi o negócio social criado a
partir do projeto OneDollarGlasses. Hoje em oito países, inclusive no Brasil, a
iniciativa começou em 2012 com o físico e matemático alemão Martin Aufmuth, 43,
e já distribuiu 100 mil pares.
Seu primeiro contato com o
problema da falta de acesso a óculos foi ao "Out of Poverty" (Para
Sair da Pobreza, em tradução livre), do empreendedor social tcheco Paul Polak.
"É um problema não solucionado pela OMS [Organização Mundial da Saúde] ou
pela ONU [Organização das Nações Unidas], e ninguém ligava muito para
isso", explica o alemão sobre a estimativa de 700 milhões de pessoas no
mundo que precisam de óculos, mas não podem pagar.
"No dia seguinte,
acidentalmente, vi óculos de leitura, chineses e baratos, por um euro na
Alemanha, onde as pessoas têm muito dinheiro. Em outros países, como na África
e na Ásia, não está disponível. Comecei a pensar em como poderia contribuir
para a solução desse problema."
A partir disso, Aufmuth
começou a desenvolver em casa protótipos de armações com diferentes materiais
até chegar à solução de baixo custo. Na sequência, iniciou a produção da
máquina para a montagem dos pares. "Não é possível construí-los com um
alicate, [esse material] é muito resistente, normalmente usados em carros. É
barato e muito robusto. Poderia vendê-los na Alemanha por 300 euros sem
problema algum."
Ao contrário disso, o alemão
partiu para o empreendedorismo social, fundando a OneDollarGlasses. "O
nome veio porque o material custa aproximadamente um dólar, e milhares de
pessoas também vivem com menos de um dólar por dia."
A atuação com essa população
que vive abaixo da linha da pobreza trouxe diferentes desafios para o
estabelecimento do projeto. Por um lado, não há como manter a sustentabilidade
da iniciativa doando os milhões de pares necessários para solucionar o
problema.
"Quando se olha para os
700 milhões de pessoas que precisam de óculos, não é possível fazer doações até
que se acabem seus problemas. Não de maneira sustentável", afirma Aufmuth.
"As armações e as lentes podem quebrar, então manter isso para tantas
pessoas precisa ser com negócios sociais."
Vender algo onde as pessoas
passam fome, no entanto, também não é possível. "No Malawi, houve dois
períodos de fome, não havia nenhum dinheiro disponível", lembra o
empreendedor. "Não é possível vender em alguns períodos porque acaba a comida
e as pessoas não têm nada, comida, dinheiro. Não se compra óculos se está
passando fome."
Outro ponto é o
desconhecimento do problema na visão. "É muito importante trazer as
pessoas para dar os óculos a elas para realmente enxergarem seu entorno, a casa
do vizinho, pássaros nas árvores. De repente, eles veem a diferença."
Isso é o que move o
empreendedor: "Mudar a vida de uma pessoa com um instrumento tão simples,
como um par de óculos". "Existem tantos problemas na vida dessas
pessoas associados à falta de visão. Acho que é uma alegria na vida poder
enxergar bem, não é só sobrevivência."
Foi assim com Simon, que em
relato para Aufmuth deu uma noção da dimensão do problema da visão, que pode
levar a perdas significativas na lavoura. "Ele me falou que, se um décimo
das sementes não for colocado no lugar certo, ele perde 10% da renda. Isso é
mais um mês sem comida, ou seja, não dois, mas três meses sem se alimentar. Uma
mudança tão pequena como essa pode significar a morte para eles."
NO BRASIL
Casos como o do agricultor
africano se repetem em solo brasileiro, como o da matriarca Susana Maciel, 72.
Moradora do Repartimento do Tuiué, Manacapuru (AM), ela tira o sustento da
pesca e da costura feita à noite. Com o tempo, a visão ficou mais fraca, e ela
teve que abrir mão do ofício noturno.
"Aproveitava até as 11
horas da noite para costurar e fui acabando a vista. Foi quando calhou de
chegar um povo que veio lá da Alemanha fazer exame de vista aqui perto. Eles me
deram os primeiros óculos", lembra.
Quando o atendimento chegou à
comunidade, foi a primeira vez que alguns moradores fizeram um exame
oftalmológico. "Foi uma bênção. Aqui não tem médico de vista", conta
Maciel, que levou o marido, a filha e o genro para fazerem os exames. Todos
agora usam óculos.
No Brasil, levar os médicos às
comunidades faz parte do trabalho da Renovatio, do empreendedor social Ralf
Toenjes, vencedor do Prêmio Empreendedor Social de Futuro que trouxe. Esse tipo
de consulta não está presente de forma regular em 85% dos municípios.
Para o alemão, a causa disso é
um atraso na legislação brasileira. "Oftalmologistas têm um treinamento
longo, de três ou quatro anos, têm que investir dinheiro próprio, e acabam
ficando onde óculos caros são vendidos, normalmente, nas cidades, não nas áreas
rurais."
Ele usa como exemplo o Malawi,
onde a OneDollarGlasses é reconhecida pelo Ministério da Saúde do país.
"Podemos treinar nossos oculistas para fazerem os exames e fornecer os
óculos", explica Aufmuth "Isso é ótimo porque podemos treinar as
pessoas mais pobres, que são das comunidades, para ter a certeza de que eles
podem fornecer um serviço de qualidade e dar os óculos."
Essa atuação no Brasil, que
fornece o atendimento médico e os óculos gratuitamente, diverge da metodologia
empregada em outros países. Mas o tamanho do problema -42 milhões de
brasileiros precisa de óculos, mas não sabem disso-, aliado ao objetivo de
Toenjes -atingir 1 milhão de beneficiários até 2021- levaram o brasileiro a
criar o negócio social VerBem.
"Precisaríamos de R$ 150
milhões em doações em cinco anos. Seria praticamente impossível", afirma ele.
A VerBem tem a estrutura de óticas populares, com produtos que variam de R$ 39
a R$ 79. O lucro de cada par de óculos vendido -que tem custo de produção no
Brasil de aproximadamente R$ 25- vai ajudar a financiar um segundo, a ser doado
nos mutirões. Fonte: FolhaPE