Desemprego na cidade chega a 20% e muitos
ainda sofrem de depressão
Há dois anos, a folha do
calendário das casas de dois distritos de Mariana e um de Barra Longa, em Minas
Gerais, foi virada pela última vez. O dia 5 de novembro de 2015 se eternizou
nas paredes das casas que ficaram de pé em Bento Rodrigues, Paracatu e
Gesteira. Desde então, a vida dos atingidos pela lama da mineradora Samarco
está suspensa — 730 dias depois do rompimento da Barragem de Fundão, ainda se
espera pelo reassentamento, pela indenização, pelo rio límpido, cujas ações de
reparo, complexas, enfrentam atrasos e obstáculos que desafiam os órgãos
envolvidos.
A espera e a mudança brusca de
vida se tranformam em depressão nas comunidades. Algumas pessoas não viveram
para testemunhar as mudanças. Seus parentes apontam a tristeza como o agente
catalisador dos problemas de saúde. São os novos mortos da tragédia de Mariana.
“Meu
pai morreu de tristeza”
Enquanto faz arroz na cozinha
da casa alugada e mobiliada pela mineradora Samarco, na sede do município de
Mariana, em Minas Gerais, Leonídia Gonçalves, de 46 anos, lembra que um dos
maiores prazeres do pai, de 67 anos, Alexandre, era tocar moda de viola e jogar
baralho todas as noites, no bar de Paracatu de Baixo. As filhas dela, gêmeas,
brincavam na rua quando queriam. Todos moravam lado a lado, já que, ao casar,
Leonídia construiu sua casa no terreno do pai. Agora, essa é uma lembrança que
não se repetirá nem mesmo quando a família for reassentada na nova Paracatu,
que deve ser construída como reparação. Alexandre morreu em março deste ano, de
infarto.
A agricultora tem a convicção,
no entanto, de que a causa verdadeira da morte é a depressão. Seu pai foi
diagnosticado e chegou a tomar medicamento para tentar reverter a doença. “A
gente era feliz. Tinha de tudo. Hoje, tá todo mundo distante. Lá era todo mundo
família, era um na casa do outro, à noite a gente ficava na rua, não tinha
perigo de nada. E chegando à cidade agora, a gente se assusta,”, relata, ao
falar sobre a mudança de hábitos do meio rural para o urbano.
Quando os 32,6 milhões de
metros cúbicos de rejeito avançaram pelo Rio Gualaxo do Norte (afluente do Rio
Doce) e chegaram às ruas de Paracatu, um modo de vida foi soterrado. Para
abrigar os moradores, a Samarco alugou residências na cidade de Mariana, de
acordo com a disponibilidade do mercado, sem que as casas dos familiares
ficassem próximas. Os atendidos devem aguardar até que o novo distrito seja
construído.
Foi assim que Alexandre e
Leonídia viraram moradores de bairros diferentes. O aposentado, transferido de
casa mais de uma vez, mudou também de hábitos. Não saía de casa, emagreceu de
forma repentina e, hipertenso, passou a adoecer com frequência. Os filhos o
levavam ao médico, mas ele não se recuperava. Ficou depressivo. E é das últimas
palavras que trocou com a filha que a agricutora tira a argumentação mais forte
sobre o motivo de sua morte.
“O fim de semana em que ele
morreu, estava aqui comigo. À tardezinha falou: minha filha, eu não quero que
vocês briguem. São seis irmãos. E não chora, não. Eu perguntei porque ele tava
falando isso. “Eu sei que estou dando amolação para vocês, vocês chegam do trabalho,
têm que ir lá para casa”. Eu falei: “Vem morar comigo então, perto das duas
meninas”, porque ele era apaixonado por elas. Aí meu irmão levou ele embora. Às
19h30, minha irmã ligou e disse que ele tinha ido para o hospital. Quando
cheguei lá, já tava morrendo. A gente culpa é essa lama”. Era dia 5 de março de
2017. No domingo, 5 de novembro, aniversário de dois anos da tragédia de
Mariana, ela passará o dia nos escombros de Paracatu para lembrar os oito meses
de falecimento do pai.
"Caso
não é isolado"
Embora a Comissão de Atingidos
da Barragem de Fundão não tenha um levantamento de todas as vítimas, esse caso
de depressão e morte pós-desastre, de Alexandre Gonçalves, não é o único.
Quando a reportagem pediu para se lembrarem de histórias semelhantes, citaram
pessoas — sobretudo idosos — que morreram nos últimos dois anos, normalmente
depois de sintomas que os levam a acreditar que a causa foi a tristeza.
Na própria família de Leonídia,
há casos de agravamento de doenças que ela atribui à lama. Sua sogra atualmente
está internada em Ouro Preto por causa de um problema no coração. Sintomas como
medo de sair de casa, tristeza profunda e constante e esquecimento de fatos
recentes estão nos relatos da maioria das pessoas ouvidas pela reportagem. Como
no caso de Marino D'ângelo Júnior, de 47 anos, morador de Paracatu de Cima e
membro da Comissão de Atingidos.
“Fiquei um tempo sem aguentar
trabalhar, porque tive depressão. Hoje eu tomo dois antidepressivos, o que
aumentou minha glicose. Fiz exame e chegou a dar diabetes, estou esperando para
ver se vou ficar mesmo. Mas, antes de tomar esses remédios, eu só chorava”,
conta. “Depois do rompimento, a gente tem que aprender a viver de novo. E o
pior é que, além de passar por tudo, você tem que lutar para conseguir as
coisas”.
Preconceito
Existe ainda o sofrimento
causado pelo preconceito. São muitos os relatos de hostilidades sofridas pelos
atingidos que foram morar em Mariana. Luzia Nazaré Mota Queiroz, de 52 anos,
moradora de Paracatu de Baixo,“vendia sonhos” em uma loja de noivas da cidade
de Mariana antes da tragédia. Ela saiu do emprego porque não aguentava mais
ouvir comentários de clientes.
“Eu tinha que estar sempre
sorridente, alegre. Com o tempo, as pessoas entravam na loja e diziam: 'eu não
aguento mais esse povo falando da barragem'. Tinha uns que diziam que a gente
era folgado”. Segundo Luzia, a dona da loja a apoiou, mas ela optou por pedir
demissão. “Ou eu vou sofrer alguma coisa, ou a senhora vai sofrer alguma coisa.
Ela relutou, mas depois entendeu”, disse.
“Pessoas que moram em Mariana
acham que os atingidos se aproveitam da situação. Porque a Samarco é quem move
a economia da cidade, é quem gera emprego. Mas a gente não construiu barragem
para romper em cima da gente”, argumenta Marino D'ângelo.
O desemprego em Mariana passou
de 20%. Há placas na cidade pedindo a volta da Samarco. O prefeito Duarte
Júnior (PPS) afirma que 89% da receita do município vêm da mineração e da
arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que
caiu de R$ 11 milhões para R$ 8 milhões. Ele projeta nova queda, para R$ 6,5
milhões, no próximo ano, quando a Samarco, até hoje com atividade paralisada,
zera o pagamento do imposto.
O prefeito respondeu ao
questionamento da Agência Brasil sobre o motivo pelo qual essa dependência não
foi reduzida antes da tragédia. “Quando assumimos, começamos a pensar em um
distrito industrial. Mas, o que realmente acontece é que Mariana sempre foi uma
cidade muito rica. Então, era muito mais interessante você receber esse dinheiro
que vinha e gastar sem ter que se preocupar. Ninguém nunca se preocupou com a
possibilidade de a mineração acabar, então ninguém tomava a primeira atitude.
Tivemos que tomar esse tapa na cara”.
Atendimento
psicológico
A Fundação Renova, criada para
desenvolver as ações de reparação e compensação dos estragos provocados pelo
rompimento de Fundão, não dispõe de um levantamento de pessoas atingidas que
estão em depressão ou morreram durante esses dois anos, mas pretende fazer um
estudo sobre o tema. É o que diz Albanita Roberta de Lima, líder do Programa
Saúde de Bem-Estar Social da instituição, financiado pela Samarco e orientado
por um Comitê Interfederativo (CIF), composto por órgãos públicos e a sociedade
civil.
Albanita argumenta também que
existe um serviço disponível aos atingidos para trabalhar com a questão da
saúde mental. “Desde o dia do rompimento, já foi disponibilizado um conjunto de
profissionais, que vão de médicos a psiquiatras, primeiro contratado pela Samarco
e depois pela fundação”, diz. “A gente entende que é um sintoma normal, porque
mexemos com a vida dessas pessoas. Elas foram tiradas da sua vida, do seu
cotidiano, e isso precisa ser reparado. É preciso lembrar que determinadas
pessoas têm mais dificuldade para superar esse, vamos dizer assim,
inconveniente que ocorre em sua vida".
A Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) vai desenvolver o projeto Prismma,
para pesquisar a situação da saúde mental das famílias atingidas pela tragédia.
A equipe estará em Mariana entre os dias 15 e 17 de novembro para aplicar um
questionário a 1,2 mil vítimas.
Sofrimento
será cobrado na indenização, diz promotor
O promotor do Ministério
Público de Minas Gerais, Guilherme Meneghin, atua em ações e acordos
extrajudiciais para garantir os direitos dos moradores de Mariana. Ele diz que
existe uma complexidade na questão, por não existir a causa de morte por
depressão, mas confirma que os casos de sofrimento mental são comuns. Não só
pelo trauma que viveram há dois anos, mas pelas consequências de mudança de
moradia do meio rural para o urbano, as confusões com o cadastro de atingidos e
o atraso na construção dos reassentamentos.
“Tivemos uma audiência na
semana pessada, em que metade das pessoas era idosa e não foi contemplada com
os auxílios. Várias delas desmaiaram. Saíram chorando da audiência. Quem era
contemplado, de emoção. Quem não era, de profundo ultraje”, relata.
A Samarco e suas acionistas
Vale e BHP Billiton, além da companhia contratada VogBR e 22 pessoas, entre
dirigentes e representantes, já respondem a um processo criminal pela morte das
19 vítimas de 5 de novembro de 2015. A acusação é de homicídio com dolo
eventual. A ação é de responsabilidade do Ministério Público Federal.
De acordo com o promotor do
MPMG, Guilherme Meneghin, é difícil enquadrar as mortes de atingidos com
depressão no contexto criminal, mas é possível atuar na área cível. “Esse
sofrimento será cobrado na indenização”.
Até agora, os custos com
velório e o enterro do pai de Leonídia foram da família. Segundo ela, nunca
receberam uma ligação para manifestar pesar pela morte de Alexandre. Mas
Leonídia diz que não quer nada disso. Seu maior desejo é ir embora da cidade.
“A única coisa que quero é que eles entreguem minha casa. A de todo mundo. Eles
têm que agilizar a compra do terreno. Aqui tem muita família que não está
feliz. Eu quero ir embora. A gente era muito feliz”, repete durante a
entrevista. Fonte: R7