Quase metade dos
entrevistados nasceu em uma crença diferente da que tem hoje.
Em um altar num cantinho da
casa da funcionária pública Anelise Roque, dividem espaço uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida, outra de São Francisco de Assis, alguns cristais, um Buda e
um Ganesha. Até Frida Kahlo e Maria Bonita foram ali colocadas — como
representação do sagrado feminino. Católica até por volta dos 20 anos de idade,
Anelise, hoje aos 32, considera-se muito religiosa, mas sem seguir uma doutrina
específica.
— Deixei de ser católica
quando parou de fazer sentido para mim. Hoje, minha fé assimila elementos de
várias religiões e figuras inspiradoras que não necessariamente têm a ver com
religião. Eu me considero espiritualizada: acredito em Deus, oráculo, signo, no
sagrado feminino — lista ela. — E acho que isso é geracional. Enquanto minha
mãe e minha vó são muito católicas, por exemplo, conheço várias pessoas da
minha idade que creem a seu próprio modo.
Esse cenário de fé múltipla
é sinalizado em uma pesquisa inédita que será apresentada no XI Congresso de
Medicina e Espiritualidade (Mednesp), realizado entre os dias 14 e 17 de junho,
no Riocentro. O estudo, que avaliou o comportamento religioso e espiritual do
brasileiro, revela que 44% das pessoas se consideram seguidoras de duas ou mais
religiões, e 49% nasceram em uma religião diferente da que têm hoje. E o número
de pessoas que se dizem espiritualistas é, pela primeira vez, significativo: se
no Censo 2010 esse índice era de apenas 0,03% da população, na atual pesquisa
chega a 4,4%.
Em relação a crenças, metade
das pessoas entrevistadas acreditam em reencarnação. Mas ainda é maior o
percentual das que acreditam em extraterrestres: 53%. A astrologia é defendida
por 42% das pessoas, e 70% delas afirmaram já ter tido intuição pelo menos uma
vez na vida.
Autor do estudo, o
psiquiatra Mario Peres, pesquisador do Programa de Saúde, Espiritualidade e
Religiosidade (ProSER) da Universidade de São Paulo (USP), destaca que os dados
comprovam a fama de que o brasileiro tem um lado espiritual forte, e, em quase
metade das vezes, pratica o sincretismo — mistura de diferentes cultos, com
reinterpretações de seus elementos.
Um dos aspectos que mais
chamaram a atenção do pesquisador foi a quantidade de pessoas que já tiveram
experiências espirituais como ouvir (30%) ou ver (41%) pessoas mortas.
— Esses índices são muito
mais altos do que a taxa de prevalência de esquizofrenia na população, tanto
brasileira quanto mundial, que é de 0,5%. Então temos que entender esse
fenômeno como algo natural do ser humano, e não necessariamente ligado a algum
problema de saúde mental — avalia Peres, que coletou dados de uma amostra de
mil pessoas acima dos 18 anos para realizar a pesquisa.
O psiquiatra ressalta também
que o desenvolvimento de uma espiritualidade, seja ela qual for, costuma ter um
“efeito benéfico protetor” sobre a saúde física, social e mental do indivíduo.
— É muito importante levar
em conta a dimensão espiritual do paciente em qualquer tratamento. Sabemos, por
meio de estudos científicos, que as pessoas superam melhor a depressão e a
ansiedade, por exemplo, quando têm um lado religioso — destaca ele. — E não
falamos aqui apenas de filiação religiosa. Esse efeito protetor pode ocorrer
mesmo que a pessoa não tenha uma religião ou que tenha múltiplas religiões. O
que faz a diferença é ela acreditar em algo e usar essa fé em prol do seu
tratamento.
Existe até um termo para
designar isso: coping religioso. Significa utilizar a religião como forma de
enfrentamento de um problema de saúde. Peres afirma que este é um aspecto já
bastante estudado na medicina, especialmente nas áreas de oncologia e de
cuidados paliativos.
Presidente do Congresso de
Medicina e Espiritualidade, o fisiatra Luiz Felipe Guimarães sublinha o quão
forte é a relação entre saúde e espiritualidade. Segundo ele, até a imunidade
do indivíduo aumenta quando ele intensifica suas crenças em algo sobrenatural.
— Cada pessoa é o que é a
partir de sua cabeça, e não do seu corpo. Quando a mente está tranquila,
equilibrada, o corpo reage melhor. Observamos que pessoas com mais
religiosidade têm, em geral, pressão arterial mais baixa, mais controle do
diabetes e, quando elas vêm a ter problemas de saúde, tendem a lidar com eles
de forma melhor — afirma Guimarães. — Além disso, a doença conecta as pessoas.
Então é principalmente na hora da doença que elas buscam acreditar em algo e
são capazes de combinar diferentes crenças em harmonia.
O cardiologista Cláudio
Domênico, que será palestrante do congresso, afirma que a temática espiritual,
antes tão rejeitada no meio acadêmico, está aos poucos entrando nos currículos
das faculdades de medicina.
— Cerca de 70% das doenças
cardiovasculares têm como causa fatores comuns, como colesterol alto. Mas os
30% restantes vêm de hábitos negativos das pessoas, como ansiedade, desgosto,
raiva. E isso está estreitamente ligado à espiritualidade — indica ele.
CARACTERÍSTICA CULTURAL DO
PAÍS
Pesquisador do Instituto de
Estudos da Religião (Iser), o sociólogo Clemir Fernandes destaca que a cultura
brasileira é historicamente mais propensa à assimilação de diferentes credos do
que à rejeição.
— Muitos católicos e
evangélicos assimilam práticas de culturas africanas e do espiritismo, mesmo
que não se considerem seguidores dessas culturas. Conheço um pastor protestante
que é também uma espécie de ogã do candomblé. Parece antagônico, mas isso é
muito próprio da nossa formação brasileira — analisa.
Doutoranda em antropologia
da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rosiane Rodrigues avalia que uma
informação importante extraída da pesquisa é que o sincretismo religioso tem se
fortalecido nos últimos anos, mesmo com o avanço do fundamentalismo religioso.
— Desde a década de 1970, há
um avanço das igrejas neopentecostais, que têm demonizado religiões de matriz
africana e outros credos. E é interessante ver que, apesar disso, a mistura de
crenças também cresce — diz Rosiane.
Fonte:O
Globo